Entre a história e a memória

A articulação entre esses dois processos possibilita a formação de representações e valores pelos alunos e a produção de sentidos e significados



Por Ana Maria Monteiro
Mestre em história e doutora em educação, é professora da UFRJ



Se falamos da sala de aula, a relação entre história vivida e história conhecimento é ainda pouco problematizada. Parece que ainda nos encontramos no tempo em que as duas noções não eram percebidas como processos diferentes. Em decorrência disso, é comum ouvirmos a concepção de que a história ensinada é a história vivenciada.

A confusão se aprofunda quando se afirma, de forma bastante genérica, que “basta saber história para ensinar história”. Mas que “história” é essa que se “sabe” ao ensinar?
Para ensinar história, realizamos dois processos fundamentais: uma seleção cultural – definindo entre os vários saberes disponíveis na sociedade, o que implica opções culturais, políticas e éticas, possibilitando ênfases, destaques, omissões e negações. Essa seleção é enraizada socialmente e histórica, revelando interesses, projetos identitários e de legitimação de poderes instituídos ou a instituir, além de suscetível a redefinições. Ela se realiza e expressa nas propostas e nas práticas curriculares. A didatização é o outro processo e possibilita que os saberes selecionados sejam passíveis de serem ensinados.

A articulação dos dois processos possibilita a formação de representações e de valores pelos alunos, a produção de sentidos e a atribuição de significados a partir das situações de aprendizagem vivenciadas. Dessa maneira, o ensino de história contribui de forma importante para a construção e reconstrução do conhecimento cotidiano, utilizado por todos nós para a vida comum, e no qual operamos com a “memória” – construção individual realizada a partir de referências culturais coletivas.

Os professores enfrentam uma contradição que muitos não consideramos quando ensinamos e que atua de forma expressiva nos processos de aprendizagem. A proposição de Pierre Nora sobre a relação entre história e memória, que dialogam, se alimentam e se contrapõem, apresenta bem essa contradição. “A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno o presente; a história, uma representação do passado. A história, operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado; a história a liberta e a torna sempre prosaica.”

Nossos alunos, ao chegarem à escola, são portadores de saberes e referências construídos nos grupos familiares que cultivam suas memórias: de trabalhadores, de migrantes, de desempregados, de lutas diárias pela sobrevivência, de referências étnicas e religiosas que lhes oferecem explicações do mundo e de seu devir. Constituem, na área da educação, os chamados saberes prévios, que muitos de nós descartamos a priori, como expressões de ideologias que precisam ser anuladas porque portadoras de preconceitos e fomentadoras de comportamentos discriminatórios. Ou, às vezes, porque resultado de ensinamentos ultrapassados, equivocados, a serem superados por nossas aulas nas quais a “verdadeira história vai ser ensinada”.

Mas, muitas vezes, esquecemos que são referências culturais fortemente ancoradas em figuras familiares que sustentam construções identitárias. Dificuldades de aprendizagem ou resistências a conteúdos e posturas mais críticas, apresentados sob a forma de verdades absolutas pelos professores e que se chocam com as referências dos alunos?

Exemplo conhecido por muitos de nós é o caso das reações ao trabalho com o evolucionismo em comunidades de forte adesão a religiões que defendem o criacionismo. Os professores precisam estar atentos às representações sociais dos alunos e procurar dialogar com elas, principalmente no ensino de história, no qual estará trazendo revisões e críticas a saberes consolidados, que servem para a comunicação entre grupos aos quais os alunos pertencem.

As representações sociais são dinâmicas, estão em processo de constante transformação. Como diz Nora, a memória “é suscetível a longas latências e a repentinas revitalizações”. Estas podem ser induzidas pelas aprendizagens da história que, também como nos ensina Nora, “demanda análise e discurso crítico”, nos leva ao estranhamento, nos desestabiliza, nos desconcerta. Nesse sentido, é fundamental considerar a relação entre história e memória para pensar o lugar do ensino de história. O ensino de história é ou pode tornar-se um “lugar de memória”, “onde a memória se refugia, se cristaliza”?

Nora explica que os lugares de memória nascem e vivem de um sentimento de que não há mais memória espontânea nas sociedades atuais, que é preciso “organizar os arquivos, manter os aniversários, organizar as celebrações”, pois a aceleração do tempo – o presentismo – nos faz esquecer ou desconsiderar o passado.

O ensino de história é, potencialmente, um lugar onde memórias se entrecruzam, dialogam, entram em conflito; lugar no qual, também, se busca a afirmação e registro ou se desenvolvem embates entre versões e teorias sobre as sociedades, a política e o mundo. “Lugar de fronteira”, que possibilita o diálogo entre memórias e “história conhecimento escolar”, com aprofundamento, ampliação, crítica e reelaboração para uso no cotidiano.

Defendo que o ensino de história não é um lugar de memória no sentido atribuído por Nora – lugar onde memórias se cristalizam – se trabalhamos em perspectiva crítica, através da qual as memórias espontâneas de nossos alunos são mobilizadas, tornam-se objeto de estudo e de possibilidades de recriação. O ensino de história é “lugar de fronteira” entre história e memória, no qual a primeira deflagra análises, reflexões e novas compreensões.

No contexto da aula e das atividades, cabe ao professor trabalhar o “pensamento histórico” para o questionamento de verdades estabelecidas e a busca da compreensão da historicidade da vida social. Novos saberes são construídos pelos alunos, saberes esses que, ao se tornarem conhecimento cotidiano, podem vir a ser instrumentos de libertação ou resistência, assim como podem servir para a legitimação de poderes instituídos. As definições e opções dos professores no seu fazer marcam e orientam as diferentes abordagens e encaminhamentos. Como afirma Hobsbawm, professores de história são cada vez mais necessários.

Fonte: História Viva

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