Pinturas mais antigas do mundo foram feitas por Neandertais e não pelos seres humanos modernos
A
última barreira que parecia separar os seres humanos modernos de seus primos de
primeiro grau extintos, os neandertais, pode ter caído por terra de vez.
Datações
obtidas em quatro sítios arqueológicos na Espanha indicam que esses parentes
arcaicos da humanidade já produziam arte rupestre e adornos corporais (colares
e pintura) entre 115 mil e 65 mil anos atrás, muito antes de o Homo sapiens
chegar à Europa.
Desenhos
em caverna na Espanha com formato de escada, de linhas horizontais e verticais
vermelhas, têm mais de 64 mil anos e foram feitos por neandertais em caverna na
Espanha com formato de escada, de linhas horizontais e verticais vermelhas, têm
mais de 64 mil anos e foram feitos por neandertais.
Descritas
em dois artigos nas revistas especializadas "Science" e "Science
Advances", as descobertas solapam a ideia de que apenas os seres humanos
anatomicamente modernos, que surgiram na África entre 300 mil e 200 mil anos
atrás, teriam sido capazes de pensamento simbólico complexo, atribuindo
significado a imagens e padrões criados por eles mesmos. Ao que parece, as
capacidades cognitivas dos neandertais se equiparavam à do Homo sapiens nesse
quesito.
Ambos
os estudos, produzidos por cientistas de diversos países europeus, têm como
primeiro autor Dirk Hoffmann, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva
(Alemanha). Outro nome de relevo da equipe é o arqueólogo português João
Zilhão, da Universidade de Barcelona e da Universidade de Lisboa, um dos
principais estudiosos da interação entre neandertais e humanos de anatomia
moderna na península Ibérica.
A
EXPLOSÃO QUE NÃO HOUVE
Os
achados, espalhados pelos quatro cantos do território, são o último prego no
caixão da ideia de que algum tipo de explosão cultural sem precedentes, por
volta de 45 mil anos atrás, teria levado às origens da arte nas cavernas do
sudoeste da Europa, logo após a chegada do Homo sapiens ao continente.
De
fato, as realizações culturais que se seguem a esse período são
impressionantes, com belas pinturas da fauna da Era do Gelo (cavalos, auroques
ou bois selvagens, rinocerontes-lanosos, mamutes), estatuetas de marfim e até
instrumentos musicais, além de ferramentas de pedra complexas e adornos
corporais.
Nas
últimas décadas, a ideia de que tudo isso apareceu de forma relativamente
repentina na Europa foi sendo desmontada com a descoberta de desenhos
geométricos e conchas perfuradas para montar colares, entre outras evidências,
em sítios arqueológicos da África do Sul e do Oriente Médio, com datações entre
100 mil e 70 mil anos atrás.
Portanto,
fazia mais sentido imaginar que teria havido um desenvolvimento gradual dessas
capacidades entre os Homo sapiens africanos, os quais levaram tais tecnologias
simbólicas consigo quando iniciaram seu avanço rumo a outras regiões do
planeta.
Curiosamente,
sítios arqueológicos associados aos neandertais também contam com adornos
corporais similares aos criados pelos humanos modernos por volta de 45 mil anos
antes do presente. Muitas vezes esse fato era visto como sinal de aculturação:
os neandertais teriam copiado a ideia dos Homo sapiens que tinham acabado de
chegar a seu território.
DATAS
DECISIVAS
Mas
as datações obtidas por Hoffmann, Zilhão e companhia podem ter eliminado essa
possibilidade, justamente porque correspondem a um período no qual, até onde
sabemos, os neandertais eram os senhores exclusivos do continente europeu. Em
entrevista à Folha de São Paulo, Zilhão foi taxativo.
"Há
mais de 150 anos que se faz arqueologia paleolítica na Europa. Há milhares de
jazidas datadas do período entre 300 mil e 40 mil anos atrás, nas quais se
descobriram restos neandertais pertencentes a mais de 500 indivíduos
distribuídos de norte a sul e de oeste a leste, da Bélgica ao sul da Itália, de
Portugal ao Altai, e zero, repito, zero restos de modernos", afirma ele.
Os
exemplares de arte e adornos recém datados são comparáveis ao que se via na
África e no Oriente Médio quando os humanos modernos apareceram por lá. Em
Cueva de los Aviones, perto da cidade de Cartagena, os pesquisadores acharam
conchinhas perfuradas e restos de natrojarosita, um pigmento mineral usado como
cosmético.
Esse
é o local com a datação mais antiga, de 115 mil anos, feita a partir de uma
camada de rocha que recobria os restos arqueológicos, formada quando a água que
passava pelas paredes dissolvia minerais e os depositava, o que significa que a
camada é mais recente do que os objetos embaixo dela. Com o passar do tempo,
átomos do elemento químico urânio presentes nessa rocha vão se transformando em
outros elementos, o que permite a datação.
Já
em La Pasiega, no norte da Espanha, há uma estranha figura geométrica em
vermelho, lembrando uma escada, enquanto em Maltravieso, perto de Cáceres, o
mesmo tipo de tinta foi usada para marcar o contorno de uma mão; finalmente, em
Ardales, na Andaluzia, grandes formações calcárias também foram parcialmente
pintadas de vermelho. As pinturas foram cobertas por uma leve camada natural de
carbonato (de novo, mais recente que as imagens), o que permitiu a datação pelo
mesmo método do urânio.
Como
interpretar o fato de que as imagens, em geral, não representam figuras como a
arte pré-histórica posterior? "Não vejo nenhum significado especial, a não
ser o de que as primeiras formas de representação material de símbolos talvez
tenham sido de tipo abstrato, geométrico", diz Zilhão.
Embora
a genômica tenha demonstrado que houve miscigenação entre humanos modernos e
neandertais, com uma pequena porém significativa contribuição do DNA deles para
os atuais povos de origem europeia e asiática, o fato de que eles acabaram por
desaparecer como espécie, mesmo com as novas evidências, poderia indicar que há
uma diferença cognitiva importante entre eles e nós. Ao menos é o que conclui
Jean-Jacques Hublin, paleoantropólogo do Instituto Max Planck que não
participou do estudo.
"As
descobertas reduzem a lacuna entre as duas espécies. Mas os seres humanos
modernos os substituíram, e houve razões para isso", declarou Hublin à
"Science".
Zilhão
discorda. "Muitos povos desapareceram ou vão desaparecer. É porque eram ou
são cognitivamente inferiores? Por acaso, era essa a explicação que davam os
poderes coloniais oitocentistas para justificar o extermínio de povos
indígenas", argumenta, apontando que a própria assimilação genética dos
neandertais à nossa espécie contraria esse tipo de ideia.
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