"Esquenta": notas de uma falsa democracia racial
Prof. Carl
Lima
Redação d'O Historiante
Salve, salve, caro leitor! Quero aqui compartilhar com vocês uma
daquelas experiências semanais que ocorrem em quase todas
as famílias brasileiras que consomem a dita TV aberta, com destaque
para a programação dominical da Rede Globo.
Corriqueiramente,
independente da nova divisão social, que nos condiciona ao alfabeto e sua
correlação com a Classe Média, imputando-nos a substantivação de emergente B,
C, ou D, estamos nós à espera do almoço familiar, sentindo o cheiro daquela
carne ou do frango, e quando a semana permite, de uma suculenta Lasanha. Para
ajudar-nos na distração da espera, ligamos a televisão, e está lá o não tão novo
Programa "Esquenta", já em sua terceira
temporada, com boa repercussão, segundo dizem, e consequentemente
bons índices de audiência e anunciantes generosos. Isso credenciou a atração a fazer parte da programação permanente da emissora.
De acordo com o
release, este é um programa que se caracteriza pela mistura, trazendo um pouco
de tudo - verão, férias, domingo, música, humor - enfim, uma verdadeira festa do
povo brasileiro, a consagração da diversidade racial e cultural. No comando
está a militante das minorias e quase freyriana Regina Casé. Além de
apresentadora, é uma das criadoras, roteiristas e produtoras. Fazem parte da
atração figuras como Arlindo Cruz, Mumuzinho, Douglas
Silva, Péricles, Leandro Sapucahi e Fábio Porchat, sempre
acompanhados de convidados famosos, que se destacam pelo prestígio nas
camadas populares, além de anônimos que sempre têm uma história de superação
e final feliz para transmitir aos brasileiros que querem começar a semana com
fé e otimismo.
Pois bem
amigos, esse é o enredo da mais nova tentativa de justificação
da redentora Democracia Racial, ao estilo
irresponsável brasileiro. O formato é novo - utilização de um
programa televisivo - mas o desejo de comprovar que aqui vive-se uma especie de
"Lagoa azul", terra onde as raças e povos interagem, construindo com
isso um cotidiano harmônico, que se caracteriza pelo respeito às
diferenças e pelo caleidoscópio cultural, é algo antigo, que remonta à terceira
década do século XX, período marcado por fortes mudanças no contexto
político, econômico e social, emanados por uma agenda governamental varguista,
momento em que se dá a valorização do nacional. E isso não se restringe apenas
ao modelo de substituição das importações e, conseqüentemente, valorização
da indústria nacional, numa mera perspectiva econômica.
Essa
efervescência atinge também (ou preponderantemente) o campo da cultura com uma
clara preocupação em construir um novo imaginário social. Este seria permeado por novas visões e necessidades dos indivíduos, originando um
modus vivendi (modo de vida) marcado pelos ideais citadinos/urbanóides essencialmente
brasileiros. A busca pela temática nacional é visível nesse período, tanto nas
políticas públicas – ações governamentais - quanto nas artes de maneira
geral, que tentavam trazer a tona um modelo de Brasil.
A partir dessa efervescência nacionalista,
as ciências da natureza (e também as sociais, com destaque para a antropologia cultural com
fortes influências do americano Franz Boas) tentavam explicar a construção e a
genealogia do tecido social brasileiro. Se outrora a presença negra, e mais
ainda a mestiçagem originada dessa matriz, era vista como degenerativa e um
empecilho para desenvolvimento do país, agora, essa mestiçagem representaria a peculiaridade positiva da nação. Era o encontro das três matrizes raciais – o
branco europeu, o negro africano e o índio, gentio da terra – que gerava o povo
brasileiro.
O que um programa dominical como o
"Esquenta" tem haver com essas concepções? Ao meu ver, essa
atração global se sustenta numa clara exaltação do exótico - linhagem estética
da ideia de miscigenação - para ratificar mais uma vez a falaciosa sensação de
democratização racial, com retoques de classe, agindo duplamente no fingimento
do que seria a realidade brasileira. Mais do que isso, ser do povo, ser negro,
é utilizado de uma maneira crápula por aqueles que estruturam e
produzem o programa. A diversidade cultural, característica de fato
marcante em nossa História, é vista de uma maneira mercadológica
e estéril, com facetas de abobalhamento e alienação. Mas, é fácil
compreender isso: para quem não sabe, por trás daquele cenário - de muito mal
gosto por sinal - que exalta a pseudo-breguice e a tradição brejeira do
brasileiro, está um Hermano Viana, um Fernando Meirelles, os irmãos Waddington,
entre outros, que fazem parte de um grupo que desde a década de 1990 manipula a cultura brasileira, vide Cidade de Deus, Cidade dos Homens, Brasil
Legal, Subúrbia, Antonias, utilizando o popular, enquanto mercadoria,
onde eles continuam no topo da pirâmide social e aqueles sujeitos que esmolam
suas benevolências são objetos de grande valia para composição da encenação. E Tudo isso regado, como os Domingos das Classes privilegiadas exigem, a
um bom Vinho do Porto, Charuto Cubano e ao famigerado "Politicamente
Correto".
[1]
A escola de Sociologia
paulista da USP é considerada como responsável pelo apogeu e aprofundamento dos
estudos de relações raciais no Brasil. As pesquisas advindas dessa escola
contribuíram trazendo novas categorias analíticas para o centro da discussão,
assim relacionou a questão racial com a de classe. Além disso, essa escola
revelou um grupo de intelectuais fecundos, com destaque para: Roger Bastide,
Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni.
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